O Registan de Samarcanda – Uzbequistão
Localisação : Samarcanda • Uzbequistão
Fantasiou-se muito sobre as antigas rotas comerciais, que ligavam o Extremo Oriente ao Ocidente, cheias de perigos, de aventura, e para os mais sortudos, de riquezas… Não existe ao meu ver, nenhum lugar igual no mundo como a Praça do Registan que vos mostro hoje, no Bene Vale. Uma praça que evoca mil e uma histórias, mil e uma aventuras. Se as paredes pudessem falar, tinham tanto para nos dizer! Para aqueles que queiram encontrar o contexto histórico da cidade, lembram-se que já evoquei no artigo sobre a Rota da Seda, que este lugar, é mítico, cheio de história e será para sempre, a mítica Samarcanda, do atual Uzbequistão.
Antes de começarmos a descoberta deste lugar mágico, devo explicar a presença de todo um cenário que ocupava a praça. Quando fomos para lá, estávamos em pleno momento de preparação para a grande festa dos vinte anos de independência do país! O facto deste evento ter lugar na praça do Registan, demonstra, ainda nos dias de hoje, a importância que este lugar simbólico tem para os uzbeques. Eles não querem que esta praça seja um mero local para turistas, mas antes, um lugar cheio de vida, tal como desejado por Tamerlão no passado.
Os magníficos monumentos que podemos ver na atualidade, não se encontravam aqui no tempo de Marco Polo, lugar que o próprio nunca conheceu. A primeira vista, parece estranho, sabendo que Samarcanda era um lugar central e um lugar de destaque na Rota da Seda. Não será tão estranho, se soubermos que em 1272, data em que Marco Polo fazia o seu périplo pela região, a cidade era apenas um vasto campo de ruínas, longe do esplendor que outrora a caracterizava. É verdade que Gengis Khan passou por cá uns cinquenta anos antes, em 1220. Os monumentos que podemos apreciar hoje são relativamente recentes. Foi só no ano de 1369 que a cidade recuperou o seu esplendor original, tempo em que Tamerlão fez desta cidade a sua capital.
Governada por monarcas de qualidade, a cidade irá rapidamente recuperar o seu antigo esplendor e a sua praça, lugar de encontro como sempre foi: Samarcanda significa muito provavelmente “lugar de encontro”. O Registan adquire paulatinamente a sua posição atual após as invasões mongóis de Gengis Khan. A antiga cidade em ruinas, os habitantes daquele local, precisavam de um novo lugar para se reunir e iniciar as suas atividades comerciais. Escolherem um lugar que era repleto de areia, “registon” em uzbeque, daí advém o nome “Registan”. Atualmente, todas, ou quase todas as praças principais das cidades da Ásia Central tem o nome de Registan e um ponto culminante: a praça da Samarcanda.
No tempo de Tamerlão, a praça tornar-se-á, no centro comercial, lugar por onde passava todas as mercadorias da Rota da Seda. Os ocidentais encontravam aqui os chineses para aqui fazerem negócio. Esta mistura de povos, ainda se observe nos dias de hoje. De facto, o cruzamento de etnias, é muito visível entre o povo uzbeque. Ulugh Beg, descendente de Tamerlão e dirigente da Dinastia Timúrida, detentora do poder em Samarcanda, irá fazer de Registan, o lugar oficial do centro do poder. É aqui que terão lugar as grandes cerimónias, os desfiles militares ou os anúncios sobre as tomadas de decisões.
As madrassas do Registan
Uma praça deste calibre, de tão grande importância, devia sem qualquer dúvida ser o local de cristalização do poder estabelecido. Para isso, magníficos monumentos foram construídos, ainda visíveis nos dias atuais. Três monumentos saltam à vista envolvendo a praça do Registan: a madrassa de Ulugh Beg, a madrassa de Tilla-Kari e a madrassa Shir-Dor. Cada uma dos monumentos, estabelecem uma certa notoriedade a esta venerável praça, orgulho da Samarcanda e dos uzbeques.
Madrassa de Ulugh Beg
Uma madrassa, é acima de tudo, uma escola em árabe. Por extensão, associamos este termo com as escolas do Corão, mas tal não era necessariamente o caso no tempo dos Timúridas. Esta escola foi construída por Ulugh Beg, entre o ano 1417 e 1420. Foi batizada com o seu nome. Construída em tijolo, como em quase tudo na Samarcanda, é coberta por majólica, característica dos monumentos deste lugar. É uma construção clássica da Rota da Seda, respeitadora dos códigos do Islão, com as suas decorações estritamente geométricas, que nos fazem lembrar as estrelas (Ulugh Beg era astrónomo) e as suas inscrições em cúfico, como este “Alá” que conseguimos ver nos minaretes de trinta e três metros de altura. Durante todo o século XV, esta Madrassa será um centro de ensino de excelência, conhecido e muito cotado em todo o mundo muçulmano.
Uma madrassa é sempre construída no redor de um pátio interior, no qual se articulam os vários elementos da escola. Os quartos dos alunos davam para este pátio, lugar privilegiado para a reflexão e a oração. A restauração permanente dos monumentos pelas autoridades uzbeques dá-nos uma ideia pormenorizada do que poderiam ver os estudantes do século XV a partir dos seus quartos. O momento em que a praça do Registan era apenas um lugar em ruinas, sítio onde os vendedores vinham para aqui negociar num barulho infernal, ficou muito para trás no tempo.
Umas das características das madrassas não se encontram na madrassa de Ulugh Beg: têm por norma dois andares. Com o declínio da Samarcanda e com o fim da Rota da Seda, os dirigentes não tinham meios para manter estes magníficos monumentos que evocam uma glória muito longínqua do passado. No século XVIII, o segundo piso da madrassa ficou muito danificado pela intempérie do tempo, não foi restaurado, mas apenas desmantelado para nunca mais voltar a ser reconstruído. O que podemos ver hoje, é o fruto de um sério trabalho de restauração que decorreu no século XX, a pedido do poder soviético, que conservou os grandes monumentos da URSS. Se pensarmos bem, é muito curioso que o Império Soviético, ateu e abertamente anti-religioso, mantém os símbolos de um passado monárquico e religioso de uma das suas províncias. Se soubermos que muitos desses edifícios religiosos foram transformados em lugares de acolhimento para turistas que procuram algo exótico, tudo fará mais sentido. Os monumentos perderam toda a sua conotação religiosa, vários anos de comunismo ateu passaram por cima da fé islâmica.
Na atualidade, a maioria dos monumentos forem esvaziados do seu conteúdo religioso, a madrassa de Ulugh Beg não foi exceção. No seu interior, podemos deter os nossos olhos numa galeria de Arte, ou uma exposição sobre o trabalho dos artesãos de Samarcanda. São na verdade, nada mais, nada menos, que lojas locais de artesanato. A maioria dos visitantes são turistas, na sua maioria uzbeques, com o intuito de descobrirem os tesouros da sua nação. Paira uma grande tranquilidade na praça do Registan, o que não é comum para um lugar turístico como este, rico em cultura e em arquitetura. É a alegria de estar num país ainda desconhecido da cultura “mainstream”, temos que aproveitar, é sol de pouca dura…
Madrassa Shir-Dor
Podemos ver um grande edifício situado em frente à grande madrassa de Ulugh Beg, gêmea na sua aparência. É a madrassa Shir-Dor, “que segura o leão” (ou Cher-Dor, Sher-Dor), um mausoléu em honra do íman Muhammad Ibn Dja’Far, filho ou discípulo de já’Far al-Sâdiq, fundador da primeira escola corânica do mundo muçulmano. Esta madrassa, construída pelo governador da Samarcanda Yalangtush Bakhodur entre 1619 e 1636, para substituir a antiga khanaka (morada dos Derviches) no tempo de Ulugh Beg, então em ruínas.
Esta madrassa é simplesmente o monumento mais conhecido do Uzbequistão, não porque serve de mausoléu a um grande íman, mas sobretudo, porque apresenta na sua fachada, representações que surpreendem a Arte islâmica. É verdade, aí podemos ver tigres pintados, acompanhados de um sol antropomorfizado, símbolos uzbeques que encontramos nas notas da moeda local. É deveras surpreendente, pois estamos mais acostumados às decorações estritamente geométricas, em acordo com a fé islâmica.
Estes azulejos com as suas cabeças de leão, só foram reconstruido em 1962, momento dos trabalhos de restauração. É um dos grandes símbolos do Profeta Ali. Parece ter sido um símbolo dos reis de Samarcanda, o que é muito provável, dado que Alexandre o Grande veio aqui caçar esto tipo de animal pela região. Podemos afirmar com alguma segurança, que se trata de um dos símbolos do zoroastrismo, a religião dominante nesta zona do globo, antes da chegada do Islão! As inscrições da fachada, para além de serem uma vibrante homenagem ao governador Yalangtush, também são uma indicação do nome do arquiteto deste edifício: Abdul Djabbar, o “mestre do decoro”, Muhammad Abbas.
Madrassa de Tilla-Kari
O governador Yalangtush mandou construir esta nova madrassa, dez anos após Shir-Dor, em 1646. Construída para substituir o antigo caravançarai Mirzoï, combina com uma grande mesquita da sexta-feira, tornada indispensável, desde o tempo, em que as outras mesquitas caíram em ruinas. Mais de vinte anos serão necessários para a conclusão dos trabalhos. Tilla-Kari significa “coberto de ouro”. Querendo impressionar através da beleza dos seus edifícios, o governador manda construir o que seria a última madrassa. Tinha por obrigação de ser excecional. Deveria deixar uma imagem de riqueza e de luxo para quem aqui viesse. É uma aposta bem-sucedida. Quando entramos na mesquita, só podemos ficar surpreendidos pela profusão dos trabalhos finamente decorados das paredes azuis, com os pormenores dos motivos geométricos cobertos por inscrições árabes. Basta levantar os olhos para ver os motivos da cúpula restaurado nos anos 70, para ter uma ideia precisa: Yalangtush queria que esta obra marcasse os espíritos. Bravo! Ele conseguiu. Foi pena falecer cinco anos antes do fim dos trabalhos… Tilla-Kari apresenta-se com uma arquitetura mais convencional para uma madrassa, com dois andares em perfeito estado de conservação. Em contrapartida, não existe nenhum minarete.
Na praça, podemos ver o mausoléu (dakhma), todo ele feito em mármore das Chaïbanides, dinastia regente de Samarcanda, e lugar de origem dos uzbeques. Um mercado também é visível, Chorsu e uma grande cúpula. Era debaixo desta cúpula que se vinha aqui negociar. Construída no século XV, Chorsu foi restaurada no início do século XVIII. Encontramo-la, logo por detrás de Shir-Dor. Este mercado, é na atualidade, uma galeria de Arte uzbeque.
Esta praça e o seu conjunto de três escolas muito prestigiadas, poderia ser comparada na atualidade, à uma grande Universidade. O Registan está inscrito como património mundial da humanidade pela UNESCO. Era o mínimo necessário para proteger um monumento que está em constante perigo e um lugar excecional como este. As características geológicas do terreno, local onde repousam as madrassas, são muito pouco estáveis. Encontram-se por cima de um lençol freático e de uma zona sísmica. Eu cá não me preocupo muito, os uzbeques são muito respeitadores do seu lugar tão emblemático!
Lindíssimas as fotos que nos deixam extasiados. Parabéns pelo textos e fotos.
Parabéns pelo relato. Estou conhecendo a história recente do usbesquistao agora, lendo o livro diplomacia suja ( 2006) sobre o governo karimov.